Era 1990 quando Fernanda Abreu sacudiu o marasmo do mercado fonográfico com “um novo som na praça”. Com “SLA Radical Dance Disco Club”, a artista tirou o público antenado para dançar e encorajou Tigronas e Tigresas a saírem da toca. Inventiva e corajosa, ela (que começara como backing da Blitz) reencontrou seu lugar (de fala e de canto) no segmento onde reina soberana há décadas, conseguindo um feito: ser camaleônica sem perder a (alta) fidelidade à sua sonoridade e a si própria. “A mulher tem de se posicionar”, defende ela nesta entrevista ao NEW MAG. A seguir, Fernanda fala de pioneirismo, maturidade, aplaude a legitimidade do funk, lamenta o fatiamento territorial do Rio de Janeiro entre facções, defende a prerrogativa de os compositores atualizarem suas letras e não mede palavras ao falar de Anitta: “ela é foda”.
Marina Lima, que surgiu na virada entre os anos 1970 e 80, se definiu certa vez como temporã de uma geração e primogênita de outra. Você se sente assim em relação à turma do rock e aos artistas dos anos 1990?
Exatamente assim. A Blitz surgiu em 1982, quando o país passava por uma abertura política e precisava resgatar as liberdades perdidas. Ainda que não estivesse num protagonismo, cantar ali me possibilitava realizar algo na música, na dança e na performance. E assim foi até1986. Com o meu primeiro disco (“Sla Radical Dance Disco Club”), por trabalhar com o Fausto (Fawcett) e com o Laufer, houve um corte bem radical. Aquele trabalho foi pioneiro ao se utilizar de tecnologias que estavam surgindo. Então, nesse sentido, fui temporã e primogênita.
Você empoderou uma legião de mulheres no funk. Reivindica para si o título de madrinha ou abre mão dele?
A imprensa me definiu certa vez como a “Mãe do pop dançante”. Sou uma referência e tenho esse lugar. Quando comecei a trabalhar com o (DJ) Marlboro, os DJs iam aos bailes com seu equipamento de som. Não havia ainda esse lance de MCs. Os homens ocuparam esse lugar e a reboque vieram mulheres como a Tati (Quebra-Barraco) e a Deize Tigrona.
E você contribuiu imensamente para tirar o funk da marginalidade…
Hoje o funk está no mainstream, mas nem sempre foi assim. Já fui acusada de fazer apologia ao crime e ao narcotráfico, e o racismo estrutural contribuiu muito para esse pensamento. A música reflete um contexto social e cultural. Houve uma mudança importante: a sociedade viu que o morro não era um reduto do samba somente. Esse lugar existe, e o funk ganhou projeção de forma orgânica. Não é o funk que tem de mudar, mas a realidade daquelas pessoas.
Voltando às mulheres, você e Anitta encontraram-se numa premiação. Você gosta muito dela, não?
Anitta é foda! Ela canta legal, dança bem e teve capacidade, inteligência e musicalidade para escrever a própria história. Ela saiu de Onório Gurgel e quebrou barreiras. Acho importante também a defesa dos gays e da autonomia feminina. A mulher tem de se posicionar. E o artista também tem de fazer uso desse privilégio, precisa se colocar e provocar reflexão. Não pensei duas vezes quando abracei o “Ele não”. O patrocínio dançou? OK. O Brasil é uma extensão da minha casa. Se temos voz vamos usá-la.
Você tem isso de respeitar velhos mundos e estar atenta ao novo. Sempre foi assim?
Cresci numa casa onde, na parte de cima, moravam meus pais, eu e meu irmão (Felipe) e embaixo, meus avós. Ouvi MPB, samba, música clássica e, por influência do meu irmão, jazz. Tínhamos o hábito de ouvir música após o jantar e rolava de tudo. Quando me interessei por música pop, abri o leque para o blues e para o som da Motown. Não tive uma formação acadêmica, não leio partitura e o vilão me ajuda a compor. Tenho lacunas, mas a minha educação musical foi muito rica.
Há uma onda de atualizar e resignificar canções. Nesses tempos de mudanças climáticas, Rio 40 graus pode virar Rio 60 graus?
As pessoas me encontram na rua e pedem isso. Algumas brincam que a culpa é minha e respondo que tá bom (risos). Já recebi proposta para ela ser usada num comercial, mas recusei. Não tinha a ver. Essa canção está relacionada à urbe carioca e se mantém completamente atual.
E o que achou da decisão do Chico Buarque de não mais cantar “Com açúcar, com afeto”?
As músicas retratam o comportamento da sociedade brasileira, e o autor tem essa prerrogativa. Ainda mais se a letra está relacionada a um contexto abusivo, como no caso da canção do Chico. A arte retrata o seu tempo, mas há também todo um letramento pelo qual precisamos passar. O compositor tem essa prerrogativa e, em alguns casos, o intérprete também. Eu mesma mudei a letra de “Babilônia rock”. No lugar de ”Corra, mina, é Carnaval”, canto “Por aí é Carnaval” porque o Rio tem essa vocação festiva.
“O Rio é uma cidade de cidades misturadas”. Como vê hoje essa “cidade maravilha mutante”?
O Rio é um território de territórios dominados por milícias, pelo tráfico e pela ala corrupta da polícia. E isso afeta a educação de crianças e jovens. Um professor tem hoje sua autoridade colocada à prova, seja por alunos ligados a facções ou mesmo pelos pais que questionam suas medidas. E chegamos a esse ponto! Tenho uma paixão vital pela geografia do Rio, que é exuberante. Apesar de tudo, minha esperança no carioca se mantém. É uma gente autêntica, despojada, espontânea, mal educada às vezes, é verdade, mas vibrante. E essa falta de educação não é um privilégio nosso, mas do mundo todo.
Fausto Fawcett tem uma percepção ímpar do mundo. O que mais te atrai na parabólica múltipla que ele é?
O Fausto tem essa capacidade de aliar inteligência, conhecimento e inventividade, misturarando erudição e cultura pop. Ele é capaz de, numa conversa, ir do teatro grego às chacretes. A figura da “Godiva do Irajá” (de “Kátia Flávia”) é um achado. Ou a ideia de associar uma calcinha a um míssil (“Exocet”), num conceito de sexo explosivo… Só ele, com aquela cabeça inventiva, é capaz desse tipo de conexão. O Fausto é uma pessoa e um artista únicos.
Você, assim como a Rita Lee, tem um altar ecumênico em casa. Qual entidade urbana acrescentaria ao seu gongá?
A própria Rita Lee e outros nomes da música como Carmen Miranda, Clementina, Clara Nunes, Martinho (da Vila),Prince.. E não somente eles: Pelé, Marta, Tatiana Leskova e (Mikhail) Baryshnikov, Lígia Pape, Luiz Zerbini e, claro, as Fernandas Torres e Montenegro.
No “amor geral” você dança e canta aliando disposição e rigor. Manter-se jovial é um perrengue ou a única saída?
Perrengue de jeito nenhum. A saúde não vem de graça e exige uma luta diária. Preciso fazer meus exercícios esteja a vida corrida ou não. Nunca fiz lifting e cheguei até aqui com zero de procedimentos estéticos. Nesse ponto tenho mais medo do que vaidade. Minha preocupação é a de não perder minha energia e quero mantê-la o máximo que puder. Acho que a época mais difícil da vida é a adolescência, quando temos mais conflitos e inseguranças. A gente envelhece e não tem jeito!
Créditos: Christovam de Chevalier (textoe entrevista) e Murilo Alvesso (imagem)