Aliar tradição e inovação é para poucos. E Fabiana Karla tem esse dom. A atriz levou à TV seu matulão carregado de referências e possibilidades. Do Pato Donald e de Soró Sereno, o nordestino interpretado por Arnaud Rodrigues (1942-2010) na novela “Pão, pão, queijo, queijo”, tirou elementos para criar uma de suas mais queridas personagens. Lucicreide caiu no gosto do povo e colocou a doméstica num outro patamar. Ela foi da TV ao cinema e, através dele, à NASA. Filmando naquela agência norte-americana, a atriz se deu conta de aonde chegara com a personagem. “Foi como fincar uma bandeira na lua”, conta ela que, a partir desta sexta, dará expediente nos palcos. Ela e Tania Bondezan estrelam “Radojka – Uma comédia friamente calculada”, na qual são dirigidas por Odilon Wagner. Escrita pelos uruguaios Fernando Schmidt e Christian Ibarzabal, a peça ocupa, a partir desta sexta (17), o Teatro Sergio Cardoso, em São Paulo. Nesta entrevista por telefone ao NEW MAG, Fabiana elenca referências como Renato Aragão, recém-chegado aos 90 anos, avalia as transformações pelas quais o humor passa, celebra o fato de o público lotar as salas de cinema e conclama a classe artística a se engajar na pauta relacionada às mudanças climáticas.
Na peça, você é dirigida pelo Odilon Wagner, conhecido pela disciplina e pelo rigor consigo próprio. Teve medo de trabalhar com ele?
Nenhum (risos). O Odilon é, como sinalizou, rigoroso. É uma figura imponente com uma elegância no tratar e no agir. Por ele ser ator, foi abrindo gavetas em mim e, com isso, me tirando da zona de conforto ao mesmo tempo em que segurou coisas que trago comigo. Então, esse processo representou um ganho profissional enorme, e o mesmo vale para a Tania. Temos estilos de atuação diferentes, e o Odilon foi um fio condutor para elas.
O público lota as salas de cinema, impulsionado por produções como “Ainda estou aqui” e “O auto da Compadecida”. O brasileiro pode recuperar o prazer de ir ao cinema?
O público se sente representado quando se vê na tela. E, quando isso se dá de forma genuína, a gente fica orgulhoso. A vitória da Fernanda (Torres) no Globo de Ouro é um termômetro para a gente perceber o quão orgulhosos ficamos dos nossos. E, como mulher, fiquei 3 milhões de vezes emocionada. O reconhecimento dela reverbera como um grito de gol em todos nós.
Você foi premiada em Los Angeles, cidade muito afetada pelos incêndios na Califórnia. É hora de a classe artística estar mais engajada com as mudanças climáticas?
Sim. As salas de roteiro discutem muito temas da atualidade com um focos na inclusão e na representatividade, mas é fundamental que essa pauta seja também discutida no cinema e no teatro. Esse assunto é comumente relacionado à Educação e abordado em projetos-escola (quando peças são levadas a instituições de ensino), mas está na hora de essa pauta ter mais abrangência. E o humor pode ser uma boa ferramenta para tanto. Costumo dizer que o humor é um algodão entre cristais. Digo isso pelo fato de assuntos pesados poderem ser tratados com leveza.
O humor na TV foi, por muitos anos, pautado pelo bordão. Ele é fundamental no humor?
O povo brasileiro é chegado num bordão. Muitos são criados pelo povo e expressam a sua vontade. Você há de convir que “Não é brinquedo, não” (bordão de Dona Jura, personagem de Solange Couto) é ótimo, por exemplo. E, em alguns casos, é necessário colocar um tempero. O “morreu” do Nerso da Capitinga (personagem de Pedro Bismark) dito sem intenção não tem graça nenhuma, mas a entonação dele faz toda a diferença. Assim foi com o meu “Isso pode”. Quando o (Maurício) Sherman veio com ele, perguntei se teria graça. Coloquei meu tempero, e o bordão pegou. Sinto falta do humor de bordão. Ele já foi muito criticado, mas não morre.
Falando nisso, Renato Aragão acaba de completar 90 anos. Quala importância dele na tua formação?
O Renato tem uma importância ainda maior para mim por ser nordestino. Ele, Chico Anysio e Tom Cavalcanti deram voz (e a fala da atriz fica embargada) a todos os nordestinos e abriram caminho a muitos comediantes como eu. Senti falta de uma representante feminina, e esse lugar acabou ocupado pela Dercy (Gonçalves). O Jô (Soares) foi outro nome com quem me identifiquei por ele ser gordo. Tanto que o sobrenome da Lucicreide é Soares Leite, e o Leite vem do Ary Leite, comediante nordestino que foi muito importante também.
Até que ponto completar 50 anos te amedronta ou fascina?
Tenho visto mulheres fazendo um sucesso estrondoso a partir dos 40. Dia desses, uma amiga disse que queria voltar a ter 28 anos. Disse que não, pois aos 28 anos não tinha dinheiro (risos). Minhas filhas estão formadas e elas foram criadas através do trabalho que realizo como artista. Hoje trato do meu TDH (Transtorno do Déficit de Atenção). A maturidade me mostrou que a prioridade sou eu.
Por isso a mudança para São Paulo?
Vim do Recife, morei alguns anos no Rio, e São Paulo é a cidade que mais se adéqua ao meu ritmo. Gosto muito de gente e disso de a cidade aliar agitação e natureza. Sou metódica e gosto de me sentir bem. Estou vivendo melhor do que imaginava. Não sou perua, mas sou vaidosa. Cuido da saúde e do meu corpo para melhorar minha performance de vida, e não posso deixar que meu corpo não me acompanhe. Aos 50 anos a gente consegue dominar melhor a vida.
Você e Grace Gianoukas mudaram a forma de o público olhar para figuras que, antes, eram ridicularizadas. O que te deixa mais orgulhosa nessa caminhada?
Mulheres como a Grace e eu conseguimos provocar mudanças de paradigmas. E a ficha caiu quando eu estava de Lucicreide filmando na NASA. A Lucicreide é uma mistura de Pato Donald com o Soró Sereno (personagem de Arnaud Rodrigues). Ela é uma ode às mulheres nordestinas e àquelas que me cercaram na infância. Ali na NASA, pensei: a Lucicreide chegou até aqui? Foi como fincar uma bandeira na lua.
O politicamente correto é um grilhão ou uma libertação para o humor?
O humor precisa de um ponto de equilíbrio. Durante anos foi mais fácil rir do defeito do outro. A relação que cada um tem com o humor é também muito particular. Você olha para alguém e aquela pessoa te remete a algo que te faz rir por alguma razão. O humor é algo particular, tem a ver com referências, mas ele não pode ferir. Esse equilíbrio precisa existir, e a gente precisa atentar para isso. Quando o humor leva alguém a tirar a própria vida, sua função não se cumpriu. O humor não pode ser nocivo. Isso (e fala com a entonação da Doutora Lorca )não pode!
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