‘Sou uma pessoa que evita o conflito’

agosto 30, 2024

Mateus Solano brilha em solo teatral e fala sobre estrelismo, a carreira e sobre ter protagonizado o primeiro beijo gay da TV brasileira

Mateus Solano está sozinho em cena – e pela primeira vez. O palco está vazio e vai sendo preenchido por objetos que ganham vida a partir dos gestos do ator. Isso mesmo. E o público vê claramente a casa do seu personagem e o ônibus que o leva ao trabalho. Mateus é capaz de tornar visível o invisível. E esse dom vem a calhar quando o tema em questão é a invisibilidade. Esse é o mote de “O figurante”, espetáculo criado a seis mãos por ele, Miguel Thiré, diretor do espetáculo, e pela atriz Isabel Teixeira. O solo vem lotando o Teatro Fashion Mall, no Rio de Janeiro, e, através dele, Solano mostra, aos 43 anos, o ator potente que ele é. “O fazer teatral é algo que acontece quando somos pegos de surpresa por ele”, pontua, nesta entrevista, corroborando a frase ouvida de Ariane Mnouchkine, diretora do Théâtre du Soleil, quando, em 2002, ele planejava incorporar-se àquela trupe. Os planos não foram adiante, para sorte nossa. A seguir, o ator fala de como conduz a carreira e a educação dos filhos, comenta a responsabilidade de recriar na TV personagens icônicos e pondera sobre o legado de ter protagonizado com Thiago Fragoso o primeiro beijo gay da TV brasileira.

Os objetos de cena foram abolidos e, através das tuas ações, o público vê o invisível. Com o que foi mais difícil de lidar nesse processo?

Essa questão específica da mímica vem muito da proposta do Miguel (Thiré, coautor da peça), que é a de fazer um teatro mais essencial, em que o cenário e os objetos de cena sejam desenhados e mostrados a partir do corpo e da voz. O Miguel tem na mímica uma forma de expressão muito potente. Ele foi aluno do Desmond Jones, um mímico britânico importantíssimo, recém-falecido, e quando a Isabel (Teixeira) se juntou a nós, ela quis que mantivéssemos essa linguagem, com a qual já havíamos trabalhado em espetáculos anteriores.

Nos tempos de ralação, antes da fama, algum fato te levou a um rompante como o que acomete teu personagem na peça?

Não sou afeito a rompantes. Sou uma pessoa que lida, talvez por ser filho de diplomata, com as emoções de forma mais contida. É claro que, na vida, a gente se vê menosprezado por fatores maiores do que nós e que fazem parte da vida. A gente tá sempre cumprindo metas, então sempre procurei resolver as coisas com muita diplomacia, independentemente da profissão. Sou uma pessoa que evita sempre o conflito.

O número de invisíveis aumentou no Planeta desde a Pandemia. Como mostra esse mundo aos dois filhos?

Com certo deslumbramento pela vida, com a noção de que o momento presente é um milagre que se repete a cada fração de segundo. É importante termos consciência de viver sabendo da maravilha que é estar vivo. E sabendo que temos um papel a cumprir e um lugar que ocupamos no mundo. É claro que a vida nos exige uma série de responsabilidades como ganhar dinheiro e pegar boletos, e se a gente fica só nisso,  acaba se apagando, e isso é algo que me angustia um pouco.

Em uma emissora de TV é comum as estrelas não se dirigem aos figurantes… Como lida com esses profissionais?

Da mesma forma que lido com toda a equipe. É claro que, dentro de um estúdio, temos um papel a cumprir e não posso interferir no trabalho do cenógrafo ou dar pitaco na luz… Os figurantes formam uma única massa e lido com eles de boa. Alguns são mais respeitosos e outros estão ali para fazer fotos e conhecer os artistas. Na vida a gente precisa ser útil e minha relação com o trabalho reflete o que escolhi fazer da minha própria vida.

Indo da invisibilidade à visibilidade, você e Tiago Fragoso fizeram história ao trocarem o primeiro beijo gay numa telenovela brasileira. Qual o peso desse gesto hoje, 11 anos depois?

Esse é um dos pontos a serem elaborados, porque não há peso e sim leveza em relação a essa questão. O relacionamento homoafetivo é um fato nas sociedades e ele precisava sair da invisibilidade e foi tratado com muita leveza. A relação daqueles dois personagens foi construída a partir do afeto, o afeto entre dois homens e a partir do afeto estabelecido também com o público. O público foi fundamental para a empresa dar aquele passo. Acho que o afeto é a base de tudo. E ele, assim como a fé, é capaz de mover montanhas.

Você recriou papéis como o Mundinho e o Zé Bonitinho  e, no teatro, os de Irma Vap. Qual é o maior desafio em refazer algo já consagrado?

A primeira vez em que deparei com essa responsabilidade foi com o Ronaldo Bôscoli (compositor e personagem da minissérie “Maysa quando fala o coração”). Ele faleceu nos anos 1990 e, de certa forma, a lembrança dele estava fresca na memória de algumas pessoas. Lembro de a Mila Moreira dizer que os dois tinham namorado e de ela brincar “vê lá como vai fazê-lo” (risos). Acho que, de um modo geral, o principal desafio é o de buscar algo novo neles,  mais do que imitá-los.

Qual o maior aprendizado obtido durante o estágio no Théâtre du Soleil?

Alguns anos atrás, fui à França fazer as oficinas com o intuito de me incorporar ao grupo e, quem sabe, fazer carreira por lá. Isso foi em 2002, e a oficina tinha gente do mundo todo e foram três semanas de muita entrega e aprendizado. Éramos umas 200 pessoas selecionadas revezando-se entre a prática, no palco, e o lugar de ouvinte, na plateia. Lá pude vivenciar a questão do fazer teatral. Lembro de uma vez em que a Ariane (Mnouchkine, diretora da companhia) disse que o fazer teatral é algo que acontece quando somos pegos de surpresa por ele, como um pássaro que pousa de repente no nosso ombro. O teatro não é do ator somente, mas desse conjunto de fatores.

Imagino que tenha tido também oportunidade de conviver com a Juliana Carneiro da Cunha, estrela do Soleil…

A Juliana é minha prima de terceiro grau. Fiquei hospedado na casa dela e isso não só nos aproximou como me deu a oportunidade de trocar com ela sobre as vicissitudes do ofício e as do próprio teatro.

Devolvendo a você um questionamento da Ivana, uma de suas personagens na peça: para que Mateus veio ao mundo?

Acho que essa verve da comunicação é muito forte em mim. E há em mim uma carga de afeto muito forte. Vim ao mundo para viver, só que estamos inseridos num mundo que nos coloca distantes da vida. E acabamos influenciados por fatores externos que vão da política, religião, tecnologia, mercado de trabalho que, juntos,  fazem com que o ser humano se torne insuportável. Gosto de pensar no ator ocupando esse lugar de espelho da sociedade, fazendo uma ponte para o outro se reconhecer e se aprimorar.

Crédito da imagem: João Miguel Jr\TV Globo

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