‘Nunca gostei de personagens fáceis’

julho 5, 2024

Deborah Evelyn brilha no teatro e lembra momentos marcantes da carreira, a parceria com o marido recém-falecido e da influência de Renata Sorrah na sua escolha artística

Do que é capaz uma grande atriz? Enternecer? Emocionar? Levarmo-nos a repensar nossas vidas? Em se tratando de Deborah Evelyn, de todas essas coisas e mais. Essa atriz – um dos maiores talentos da sua geração – forjou a artista que é ao aceitar cada desafio trazido pelas personagens que viveu, tanto no teatro quanto na TV. E eles não foram poucos. É o caso de B, personagem identificada apenas pela segunda letra do alfabeto, que ela interpreta em “Três mulheres altas”, obra-prima de Eduard Albee (1928-2016) que está de volta ao Belmond Copacabana Palace, Zona Sul do Rio de Janeiro. A atriz divide a cena com Suely Franco e com Fernanda Nobre e, pelo papel, Deborah ganhou o Prêmio Cesgranrio na categoria Melhor Atriz, sendo indicada a outros tantos. Tal reconhecimento coroa uma trajetória iniciada aos 17 anos e na qual “nada foi fácil”, como ela reconhece ao NEW MAG. Na conversa, por telefone, a atriz rememora o contato com Walter Avancini (1935-2001) em “Selva de Pedra”, fala da parceria com o arquiteto Detlev Schneider, morto no ano passado, corrobora sua fé na humanidade e reconhece a influência de Renata Sorrah, sua tia, na escolha da profissão: “Não seria a triz que sou se não fosse por ela”.

Em “Três mulheres altas”, sua personagem parece conformada e mostra-se, na verdade, muito sensata num contraponto à advogada, cheia de certezas, e à patroa, cheia de convicções. Como foi encontrar essa mulher?

Lembro de chegar ao primeiro dia de ensaio e falar para o Fernando (Philbert, diretor) que estava apavorada (risos). As personagens não têm nome (são A, B e C), mas têm um material humano que não é óbvio. O ator chega ao ensaio cru, mas com algum entendimento do seu papel, e, a partir disso, segue um determinado caminho. Acontece que o Albee não é óbvio, e por isso ganhou o Pulitzer. Então, as personagens têm nuances que vão se mostrando aos poucos. Assisti recentemente a uma entrevista do Al Pacino na qual ele conta da dificuldade de encontrar um determinado personagem e que, numa das apresentações, ele se dá conta do momento em que o encontrou.

Você foi dirigida por Renata Sorrah, sua tia, para a cena apresentada na prova para a EAD. E, anos depois, vocês trabalharam juntas em “As três irmãs”, do Tchekhov. Qual ensinamento ouvido dela você leva contigo até hoje?

Na época da prova para a EAD, o candidato recebia uma lista de cenas para escolher. Uma delas era a da Nina, personagem de “A Gaivota”, do Tchekhov, que a Renata tinha interpretado ainda no início da carreira. Ao ver aquela opção, quis ter o olhar dela para aquela personagem. Morei muitos anos em São Paulo e, apesar da distância, sempre estivemos próximas. Ela é, além de tia, minha madrinha. Vem muito dela o fato de eu ser atriz.

E você deve ter assistido encenações primorosas como as de “As lágrimas margas” e a de “Grande e Pequeno”….

Antes até. Ela me levou para assistir a “Há vagas para moças de fino trato” (de Alcione Araújo), na qual ela contracena simplesmente com Yoná Magalhães e com Glória Menezes. Assisti a essa peça da coxia! Imagina, a coxia é um lugar importantíssimo para os atores. É lá onde o espetáculo começa. O respeito dela pela profissão é inspirador. E a seriedade… Não que ela seja sisuda, pelo contrário, é divertidíssima, mas tem esse respeito pelo ofício. Não seria a triz que sou se não fosse por ela.

Um papel marcante foi como a filha da Juliana Carneiro da Cunha, atriz brasileira que brilha na França, em “Selva de pedra”. O que foi mais difícil de enfrentar naquele papel?

Nunca gostei de personagens fáceis, né? Em “Selva de Pedra” tive a sorte de reencontrar o (Walter) Avancini (diretor de TV e exímio diretor de atores), com quem havia trabalhado na minha estreia na TV, em “Moinhos de vento”.  Gravávamos horas, e o Avancini não dava moleza! Lembro de, no dia seguinte às gravações, acordar com manchas roxas pelo corpo como se tivesse levado uma surra e, de certa forma, levava mesmo. E ainda tinha sobre mim a responsabilidade de interpretar o papel que, na primeira versão (em 1972), tinha sido da Sonia Braga. Imagina só!

Havia os embates entre mãe e filha, então me conta um episódio divertido envolvendo você e a Juliana …

Eu já conhecia a Juliana de “As lágrimas amargas”, mas a TV era também um veículo novo para ela. Lembro de uma cena em que ela tinha de me levar de carro a um determinado lugar, e, na hora de gravar, ela me pergunta: “o que faço agora?”. Ali, me dei conta de que ela não sabia dirigir e fui falando: liga o motor, passa a embreagem, essas coisas (risos).

“Deus da carnificina”, da Yasmina Reza, já expunha esse acirramento latente hoje nas relações humanas. O que é necessário para um texto te arrebatar?

Acho que o mais importante é tocar em algo que ache necessário ser falado. Não tenho nada contra a leveza da comédia, pelo contrário: adoro e assisto, mas preciso que o texto tenha algo que eu queira dizer. Assisti a “O Deus da Carnificina” na Alemanha e, na ocasião, tive o impulso de querer fazer aquilo. Quando procurei a Monique (Gardenberg, diretora da montagem), ela se saiu com essa : “vem cá, não quer fazer algo mais leve, não? (risos). O texto precisa ter essa característica: fazer com que eu perca meu fôlego. Adoro passar por esse processo.

A extrema direita ganha força na Europa, especialmente na França. Como você vislumbra as relações humanas nos próximos anos?

Olha… Ainda procuro manter a esperança na humanidade. E não só na Europa como nos Estados Unidos. Ver um sujeito como o Trump, que cometeu crimes, foi condenado, propaga mentiras e pode voltar a ser presidente é algo assustador. Não entendo isso. E, no caso do Brasil, no primeiro ano da pandemia, o chefe supremo da nação vai à TV fazer chacota das pessoas que estavam morrendo! Não tenho palavras para justificar um comportamento desses. Não compactuo com um mundo comandado por genocidas. Se a maioria das pessoas vai por esse caminho, então vou me relacionar com as minorias. Tudo bem. Ainda assim quero crer que as pessoas vão cair em si.

Você se divide entre Brasil e Alemanha em razão da vida construída com o arquiteto Detlev Schneider, que faleceu ano passado. A saudade pode ser um ingrediente importante numa relação?

Acho que sim, mas quando acontece de forma espontânea e não de propósito. Quando a relação começou, eu me perguntava se daria certo com um oceano entre a gente. A saudade é boa, mas ela precisa estar aliada a outros ingredientes como a confiança. E ela tem de ser mútua. É preciso ficar claro que os dois estão investindo naquela relação, que não é uma relação aberta. E essa confiança vem da maturidade. O Detlev e eu tínhamos uma dinâmica que era a de não ficarmos afastados mais do que quatro semanas, e isso foi bom.

Você chega aos 60 anos reconhecida, premiada e linda. O que diria àquela Deborah que iniciou na TV aos 17 anos em Moinhos de Vento?

Essa é uma pergunta difícil (Deborah fica um tempo em silêncio)…  Aos 17 anos, eu tinha um frescor e incertezas, medos e esperanças que levaram-me à atriz que sou hoje. O que eu poderia dizer? Para ela ir com calma porque tudo há de dar certo?  Continuo ficando ansiosa na semana da estreia e nervosa antes de entrar em cena… Até porque o ator não acaba! Talvez o que eu pudesse dizer é que ela fez a escolha certa e que essa escolha vai trazer a ela muitas alegrias. Ah, e que ela vai sentir sempre aquele friozinho na barriga antes de entrar em cena (risos).

Crédito da imagem: Pino Gomes

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