Inconformismo é uma palavra que em nada combina com Silvero Pereira. E ele faz-se presente desde seus primeiros contatos com o teatro, quando, no início do novo milênio, fundou um grupo formado por pessoas trans, até chamar atenção do público e da crítica com “BR Trans”, solo no qual discutiu questões relacionadas à essa importante parcela da população. Ousado e iconoclasta, conquistou o Brasil com personagens plenos de questionamentos, como somos todos. Alguns exemplos são o Nonato de “A força do querer” e, mais recentemente, o Zaqueu de “Pantanal”. Silvero está agora de volta aos palcos, dirigido por Andreia Pires num espetáculo tão desafiador quanto o solo que o projetou. Em “Pequeno monstro”, híbrido de teatro e performance artística, ele põe o dedo em feridas sociais e pessoais, não poupando a própria família. “Em muitas famílias o que importa é a sua infelicidade”, constata nesta entrevista ao NEW MAG. Na conversa, por telefone, o ator fala da importância de remakes como “Renascer” atualizarem-se, lembra a sintonia com Juliano Cazarré em “Pantanal” e defende mais políticos afinados com a Diversidade.
Toda família tem seus tabus e você expõe atos de violência praticados pela sua. Você diz que, na sua família, o único problema estava em ser homossexual. Qual a dor e a delícia de trazer à tona acontecimentos tão íntimos?
A peça fala muito de mim, mas não é exatamente sobre mim. Sou mais um fio condutor para levar ao espectador questões nas quais ele precisa se ver para talvez se reconhecer. Na minha família a felicidade de alguém não era o mais importante, e esse é um ponto que precisa ser revisto não só para mim, mas para muitas pessoas. Em muitas famílias o que importa é a sua infelicidade.
Um fato chama atenção na peça: muitos dos meninos têm apenas 8 anos quando são expostos à agressões brutais. A covardia precisa estar mais relacionada à incompreensão?
O (escritor) Caio Fernando Abreu tem uma frase que pretendo incluir no espetáculo e ela diz mais ou menos assim: a verdade do adulto é também a da criança. O adulto sabe o que está fazendo, já a criança não… Quando sofri abuso não sabia o que estava se passando ali. Fui ingênuo até meus 6 anos e digo que foi a partir daquele momento que minha infância começou a se desconstruir. A gente não nasce um monstro, torna-se em razão dos atos de violência aos quais somos expostos. A própria sociedade constrói seus monstros.
Para tanto é necessário mudar a forma como somos educados em casa?
A educação precisa ser exercida com consciência e responsabilidade. Tenho uma amiga que diz que vai estar atenta para poupar os filhos de comportamentos machistas ou de violência. Falo para ela tomar cuidado para não criar indivíduos que não saibam lidar com as próprias vidas.
Você ajudou a fundar no Ceará um coletivo com transformistas e artistas trans. Já sofreu ameaças pela sua ousadia?
Isso se deu ali pelo ano 2000, quando estava começando a fazer teatro. O teatro abriu minha cabeça por ser um lugar inclusivo e permissivo. Vi, com essa iniciativa, que o preconceito vinha, inclusive, da própria classe artística. Tanto que muitas das meninas foram se apresentar nas boates, onde tinham o acolhimento para serem quem eram. Vi então que aquele lugar do teatro, que achava permissivo, pode ser também opressor. Chegaram a dizer que estava criando uma escola de travestis, quando meu intuito era mostrar que elas podiam ser atrizes, indo além do papel de entertainer. O projetou acabou por abrir muitas portas. Foi de lá que saiu a Verônica Valenttino (atriz laureada com o Shell e Bibi Ferreira), por exemplo. Até que vi que eu, um homem gay cis, não tinha mais função ali e que elas podiam caminhar sozinhas.
Como vê a presença de uma personagem trans, interpretada pela Gabriela Medeiros, em “Renascer”?
Acho que um dos papéis da novela é o de educar a população. Ela entra nas casas sem pedir licença e, além de entreter, precisa informar e ajudar a sociedade a entender questões relacionadas às conquistas de direitos, e o de gênero é um deles. E, ao refazer uma novela, a trama precisa ser atualizada. Se na versão anterior a personagem era hermafrodita – e acho que esse termo nem é mais usado – ela precisa agora estar de acordo com questões do tempo de agora. E acho que isso só é possível por termos uma mentalidade pautada por movimentos que foram sendo construídos nos últimos 30, 20 anos.
Em “Pantanal” você mostrou com o Zaqueu que, um peão gay, que virilidade e orientação sexual podem caminhar juntas. Alguma resposta te tocou em especial sobre esse trabalho?
No próprio Pantanal, ouvi comentários de que peões gays eram muito comuns por lá. E esta dialética não está só no universo agro, mas em âmbitos como o do futebol e em outros. Essa dialética existe e sempre vai existir. Quando fui convidado para “Pantanal” não quis repetir o padrão do Zaqueu da primeira versão, que tinha a função de ser um alívio cômico, necessário para o telespectador. Como não queria ser motivo de chacota, sugeri que o Zaqueu não fosse caricato e que ele não viveria um amor platônico pelo Alcides (Juliano Casarré). Uma coisa bonita que aconteceu na parceria com o Juliano é que a relação entre os personagens foi construída a partir do nosso entendimento sobre aquela situação, e ela seria uma relação de amizade pautada pelo amor, o que é totalmente possível entre um homossexual e um homem hetero. Foi importante termos levado essa questão à TV.
Em “Bacurau” você demonstrou que, com a licença de Rita Lee, era mais macho do que muito homem. (Silvero ri) Como foi a experiência de trabalhar com o Kleber Mendonça Filho?
Foi incrível. Até porque o Lunga foi fruto de uma abertura do Kléber e do Juliano (Dornelles, codiretor e corroteirista do filme) às minhas propostas para o personagem. E ele não foi construído sozinho. Ele tem elementos sugeridos pela Rita (Azevedo, figurinista) e pela preparadora de elenco e, juntos, chegamos a um consenso sobre aquele tipo, e essa experiência foi fantástica para mim.
É possível pensar num Brasil mais tolerante com as diferenças nos próximos 20 anos?
Para isso ser possível é necessário começarmos imediatamente um grande projeto relacionado à Educação, e ele só será possível quando os poderes Legislativo e Judiciário estiverem de fato afinados com as causas LGBTQIA+. São poucos os políticos assumidamente gays e os que defendem pautas relacionadas à Diversidade. Precisamos eleger vereadores, prefeitos, deputados engajados com a nossa causa, que lutem por leis transformadoras e que sejam respeitadas. Como temos eleições este ano, essa mudança precisa ser colocada em prática o quanto antes, pois, como você colocou, essa transformação leva tempo, e o resultado só poderá ser visto daqui a 20 anos.
Crédito da imagem: Igor Melo