Osmar Prado completa 65 anos de carreira como um dos ícones da dramaturgia brasileira. E desde muito cedo já dava indícios que assim seria. Aos 10 anos, integrou o elenco da novela “David Copperfield”, na extinta TV Paulista, e não parou mais. Em 1972, integrou o elenco da primeira versão de “A grande família”, na TV Globo, além de ter feito novelas como “Bicho do mato” e a versão original de “Anjo mau”. Em 1993, um marco na carreira: Tião Galinha, de “Renascer”, cativou o público. Anos mais tarde, em 2022, outro grande sucesso: o Velho do Rio no remake de “Pantanal”. E isso sem falar nos trabalhos no cinema, no qual chegou a viver o ex-presidente Getúlio Vargas (1882-1954) no filme “Olga”. No teatro, participou de uma das versões de “Dom Casmurro”, além de ter estrelado o monólogo “O fabuloso obsceno”. Depois de dez anos, retorna aos palcos em “O veneno do teatro”, espetáculos do espanhol Rodolfo Sirera no qual divide a cena com Maurício Machado, sob a direção de Eduardo Figueiredo, que está em cartaz no Teatro Firjan SESI Centro, no Rio de Janeiro. Defensor aguerrido da democracia e da cultura, ele comenta em entrevista por telefone ao NEW MAG o golpe tentado por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro, avalia o Tião Galinha de Irandhir Santos na nova versão de “Renascer” e opina sobre o trabalho de influenciadores digitais como atores.
“O veneno do teatro” marca sua volta aos palcos depois de dez anos. Por que você ficou tanto tempo afastado do teatro? Faltou algum bom projeto que motivasse esse retorno?
O meu último trabalho em teatro foi “Barbaridade”, um musical. Fiz as temporadas do Rio e de São Paulo. Tinha acabado de chegar da Europa com a minha mulher e a minha filha. Estava contratado da Rede Globo e não havia previsão de trabalho iminente. Como era uma peça escrita por Luis Fernando Verissimo, Ziraldo e Zuenir Ventura, eu quis fazer. Éramos três velhinhos: eu, Edwin Luisi e o Marcos Oliveira. Nós íamos nos divertir, cantar, embora fique um pouco nervoso quando canto. Depois, entendi que me precipitei um pouco em aceitar. Fui muito bem tratado, não tenho nenhuma queixa da produção, mas me frustrei comigo mesmo. Cumpri aquilo profissionalmente, mas não tinha um estímulo para fazer a peça, como tenho, por exemplo, em “O veneno do teatro”. Pensei em voltar aos palcos só se acreditasse 100% no projeto. E, de fato, nesses dez anos não apareceu nada que me estimulasse a subir ao palco. Até que, encerrada a gravação de “Pantanal”, com todo o sucesso da novela, em particular o do Velho do Rio, recebo um telefonema do Eduardo Figueiredo, que é o nosso diretor e produtor, junto com o ator Maurício Machado, me convidando para fazer o Marquês de “O veneno do teatro”. Quando li o texto magnífico de Rodolfo Sirera, a única preocupação que tive era se teria capacidade para fazê-lo. Não por não ter condições físicas aos 76 anos, porque tenho um bom preparo físico, mas de minha memória dar conta da quantidade e da complexidade do texto. Não é que tenha desejado voltar, era imprescindível que aceitasse. Aquilo ali era uma conspiração cósmica. Esse texto veio para mim à toa. Eu jamais seria lembrado pelos deuses do teatro se eu tivesse me negado a fazer essa peça.
Como é contracenar com Maurício Machado, um ator e empreendedor muito devotado ao teatro?
O Maurício é um ser humano especial. Só podia ser ele. E diz, inclusive, que sou o parceiro dos sonhos dele. É um casamento artístico. Desde a primeira leitura que fizemos no Rio de Janeiro, no Teatro das Artes, com a presença do Eduardo, sentimos que iríamos selar ali um pacto. Logo na primeira leitura. É um texto escrito para dois atores, e conta ainda com a presença de Matias Roque, com seu violoncelo magnífico, pontuando musicalmente toda a trajetória da peça. Não pretendo mais deixar de fazer “O veneno do teatro”. A não ser que o Eduardo fique chateado comigo e me substitua (risos). E não há nenhum tipo de trabalho na televisão que possa me demover e deixar de fazer a peça. Portanto, não devo voltar à TV tão cedo.
O que acha do desempenho do ator Irandhir Santos como o Tião Galinha na novela “Renascer”, personagem tão marcante na sua carreira?
É uma criação totalmente diferente. O Irandhir é um grande ator. Ele foi por um caminho pessoal próprio. Não me reconheço nesse Tião, e é natural que assim seja, porque quem o está fazendo não sou eu, e o que fiz era completamente diferente. Isso é muito bom. Assim como o Velho do Rio que fiz, era completamente diferente do feito pelo Cláudio Marzo. São duas interpretações diferentes, e o Irandhir tem todo o potencial e toda a capacidade para fazer um belo trabalho e um belo sucesso.
O senhor fez o Velho do Rio na novela “Pantanal” quando o bioma se recuperava das grandes queimadas de 2020. Hoje há uma nova ameaça em razão do aquecimento global. Como vê esse atraso em relação às políticas ambientais?
Vejo com muita tristeza. Estamos atrasados em todos os setores da vida brasileira. Nós presenciamos seca. Nós presenciamos jacarés se afastando do habitat deles para procurar água. Muitas vezes o barco em que estávamos raspava na areia ao fundo. Um desastre completo. Não sei como está hoje, mas o gado estava sofrendo com sede. Sobrevoávamos de avião da fazenda onde ficávamos até o local da gravação e víamos pouca água e a seca quase que absoluta na região.
O que acha de influenciadores digitais serem cada vez mais chamados para novelas, seriados e filmes por conta do número de seguidores nas redes sociais?
Na altura dos acontecimentos isso iria desembocar nesse caminho. De repente não é mais necessário os atores com experiência adquiridas ao longo de anos. Mas veja bem, a televisão é uma indústria. Há uma citação do Paulo Autran que diz que o cinema é a arte do diretor, o teatro é a arte do ator e a televisão é a arte do patrocinador. Dizem até que o Boni, durante sua gestão na TV Globo, via as imagens sem querer ouvir o som. Não importa se a voz de quem estava falando era boa ou ruim, ele queria imagens. Não é necessário ter muito talento. Se você é bonito, você tem meio caminho andado para fazer televisão. Então, o talento muitas vezes deixa de ser necessário. Agora, o tempo é que vai dizer se eles estão certos ou errados. Não se faz um ator da noite para o dia. O ator não é uma fritada que você põe os ovos numa frigideira e sai o omelete. Exige anos, exige informação, exige entendimento, exige leituras. Faço isso ao longo de 65 anos de carreira e 76 de idade. E ainda não perdi o entusiasmo.
Como tem visto o desenrolar das investigações da tentativa de golpe de Estado e os ataques ao STF, principalmente na figura do ministro Alexandre de Moraes?
Há muita prudência, ao contrário do que eles faziam. A Lava Jato fez as condenações apressadas, aquelas loucuras todas. Foi uma aberração. Ainda hoje há vídeos do Lula sendo divulgados numa tentativa de humilhá-lo e desrespeitá-lo. E por esses absurdos de Dallagnol, do (ex-juiz) Sérgio Moro, e por aí afora, até a gestão da vitória de Bolsonaro e desses últimos quatro anos da gestão de um governo golpista, que felizmente não atingiu o seu objetivo. Se tivessem vencido as eleições, provavelmente eu não estaria mais aqui. Teria que ter saído do país, com toda certeza. Ainda mais o setor da cultura, que é sempre o primeiro a ser atingido pela extrema-direita. Para eles, cultura é aquilo que disse o Göring, um dos líderes nazistas de Hitler, “quando ouço a palavra cultura, tenho desejo de pegar o revólver”.
Afinal, o teatro é um veneno?
Se for no sentido de ser uma cachaça ou um vício, sim. O teatro é, de fato, o único lugar em que o ator é absoluto. O ator e o público. Não há espetáculo sem ator. O teatro se faz até com um espectador. Só não se faz sem espectador. E ele só assiste ao teatro com a criação do que um autor escreveu, do que um diretor dirigiu, do que um técnico iluminou, do que um cenógrafo projetou, do que um músico pontua. É um conjunto de fatores.
Crédito da imagem: Raquel Cunha / TV Globo