Ela brilhou nas chanchadas e no teatro de revista. Vítima de um afogamento na ainda bucólica Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio de Janeiro, sua morte colocou o Rio de Janeiro de luto. E inspirou um dos mais belos sambas do nosso cancioneiro. Estamos falando de Zaquia Jorge (1924-1957), mulher cuja ousadia e cujo empreendedorismo foram encorajadores às mulheres de então e as das gerações subsequentes. A história dessa personagem, sobre quem sabemos tão pouco, é narrada pelo escritor e jornalista Marcelo Moutinho em “Estrela de Madureira – A trajetória da vedete Zaquia Jorge por quem toda a cidade chorou” (Record). A obra marca a estreia de Moutinho, um dos grandes ficcionistas da sua geração, no gênero biográfico.
O subtítulo da biografia não é um exagero jornalístico, pelo contrário. Zaquia é a musa do samba “Madureira chorou”, cantado a plenos pulmões no Carnaval de 1958 e, em 1975, inspiraria o enredo levado à avenida pela Império Serrano. Foram muitas as Zaquias e elas estão todas retratadas no livro, sobre o qual Moutinho esteve debruçado nos últimos cinco anos, tempo em que dedicou-se às pesquisas e à escrita.
Zaquia tinha 20 anos quando abriu mão da guarda do filho para dedicar-se às artes. Com o tempo, montou sua companhia e surpreendeu a sociedade ao escolher o bairro de Madureira para abrigar seu teatro – o primeiro aberto na Zona Norte da então capital federal, como conta Moutinho:
– Quando decide abrir um teatro, escolhe Madureira, um bairro suburbano, totalmente fora da área de elite da então capital federal. Outra característica que chama minha atenção é a persistência. Zaquia cortou um dobrado para conseguir terminar as obras de seu teatro, e foram muitas as dificuldades para contratar artistas e também para formar público em uma região onde a encenação de peças era algo inexistente.
Acontece que com ela não tinha essa de deitar nos louros de estrela. Ela arregaçava as mangas e colocava (mesmo) a mão na massa. E revelou, assim, tino de empreendedora ao firmar parcerias com comerciantes e fazer um corpo-a-corpo com os moradores locais.
– Ela precisou ser muito hábil para conquistar o público suburbano. A reação inicial à abertura do teatro foi ruim. Por conta do conservadorismo local, a chegada da companhia foi vista como uma ameaça às famílias. Zaquia buscou se entrosar com os moradores, frequentando cotidianamente as ruas de Madureira, e fez parcerias com o forte comércio do bairro. As lojas passaram a oferecer, a seus clientes, flyers que garantiam desconto nos ingressos para o Teatro Madureira. Em pouco tempo, ela conseguiu mudar de forma radical a relação, que passou de mal vista a querida, de ameaça a referência – destaca o biógrafo.
E da mesma forma que Zaquia deu tratos à bola, o mesmo pode ser dito sobre o autor do livro. Contista da linhagem de Lygia Fagundes Telles (1918-2022) e Caio Fernando Abreu (1948-1996), Moutinho assina agora sua primeira obra biográfica, e sob as bênçãos de dois craques no assunto: Ruy Castro, autor do texto publicado na quarta capa, e de Luiz Antonio Simas, que apresenta a obra. E precisou, para tanto, vencer obstáculos trazidos pelos impedimentos impostos pela pandemia.
– Praticamente todas as instituições cujos acervos eu precisava consultar estavam fechadas. Além disso, tive que lidar com a questão da falta de fontes orais, já que Zaquia morreu em 1957 e a absoluta maioria das pessoas que conviveram com ela já se foram – observa Moutinho, que driblou uma tentação comum a quem faz ficção: – Já no plano individual, precisei lidar com a exigência do rigor histórico. Ter o cuidado de não “ficcionalizar”, evitando a tentação de completar os espaços vazios com a invenção. Mas foi um trabalho que adorei fazer. Tanto é que pretendo começar em breve outra biografia.
Que venham então!
Crédito das imagens: arquivo (alto) e Monica Ramalho