Carisma e efusão são visíveis em Milton Cunha. Outras marcas são talento e dedicação. Se o Carnaval é o maior espetáculo da Terra, Milton colaborou (e muito) para isso. Como carnavalesco, colaborou para sete das mais importantes escolas do Rio de Janeiro. A frustração por não ver executadas muitas de suas ideias levou-o a mudar de ramo sem se distanciar da folia. Milton levou à TV seu notório saber sobre a festa. Depois de passar por emissoras como a TVE (hoje TV Brasil) e a hoje extinta Manchete, aportou, em 2013, na TV Globo encontrando ali sua segunda casa – porque a primeira é o Carnaval. Ali, ele brilha apresentando matérias sobre os preparativos para a festa e, nos dias de folia, comentando os desfiles. “Tenho a sorte de ser essa pessoa e de ter esse lugar de fala”, reconhece ele, por telefone, nesta entrevista ao NEW MAG. No bate-papo, ele enaltece o legado de Joãosinho Trinta (1933-2011) e Rosa Magalhães, fala da experiência como cenógrafo de Luan Santana e Ney Matogrosso e da sua coragem ao ajudar a dar visibilidade à população LGBTQIA+. “Abri alas porque nunca negociei minha sexualidade”, diz.
O público te assiste pela TV e já se sente acolhido. O que foi mais desafiador na construção do comentarista e repórter de Carnaval?
O grande desafio estava em ser eu mesmo, de verdade. Meus pais eram diretores de colégio e lutei a vida inteira para eu ser eu. Não sabia que não seria outra coisa. A forma como me mostro é muito verdadeira, e o público percebe isso. O comentarista que sou é um menino encantado, com olhos seduzidos. A escola de samba é o cenário perfeito para quem sou. Gosto de me enfeitar, de dançar e de brincar com as pessoas. Fazer reportagem sobre escola de samba é estar no quintal da minha casa. Tenho a sorte de ser essa pessoa e ter esse lugar de fala ligado às escolas. Toda essa construção é natural. Eu sou exatamente aquilo.
Você atuou, como carnavalesco, em diferentes escolas (sete só no Rio de Janeiro). Com o perdão da palavra, qual foi a maior pemba que segurou como carnavalesco?
Acho que o carnavalesco é muito exigido e cobrado. Você não tem vida e é muita gente mandando, gritando e batendo na mesa. Muitas das tuas criações não vão para a avenida. Eu, então, que era mais criativo, amo instalações e adorava propor performances, acho que a grande pemba é você equilibrar a necessidade da fluência do desfile com as suas loucuras criativas. Aí você esbarra no diretor de harmonia, que quer o feijão com arroz fácil de colocar. Adoraria mandar no processo todo, ter o dinheiro, o poder de compra e mandar fazer e ensaiar. Só que escola de samba não é assim. Ela é o resultado de um conjunto e você tem de aceitar. Aceita que dói menos.
Você dedicou estudos acadêmicos a dois grandes nomes do Carnaval: Joãosinho Trinta e Rosa Magalhães. Quais as duas principais marcas deixadas por esses artistas no Carnaval?
As duas maiores obras do meu tempo foram criadas por João e pela Rosa, e, lá atrás, ficaram o (Fernando) Pamplona e o grande Fernando Pinto. A Rosa transformou a Sapucaí num museu de exibição da nossa própria brasilidade. Já o João leva à avenida o embate político e social. Você tem o João aterrorizado pelo fogo da Justiça, indignado com as crianças abandonadas e com a corrupção em Brasília. Ele era a fratura exposta em carne viva. Ela, a erudição com um olhar inclusivo e democrático sobre nossa brasilidade.
E o que te levou à academia?
Me dediquei aos estudos porque sabia que iria precisar da teoria. Cada vez mais a universidade olha e sistematiza o conhecimento sobre o Carnaval. As escolas de samba não precisam disso e sempre viveram sem o cânone. Nós, intelectuais, é que temos de pedir licença para ir lá. Nós é que temos a ganhar ao compreender o Brasil porque eles já o compreenderam há muito tempo.
Flávio Império atuou no Carnaval e assinou cenários de shows históricos de Maria Bethânia. Hoje, pouco se fala nele… Qual a influência deixada por ele no Milton multiartista?
Os grandes artistas da música têm uma ligação com o samba e sempre admiraram essa capacidade de solução que o pessoal da escola de samba tem para o truque. E o Flávio era um desses que mostrava que não era preciso grandes maquinários para resolver as coisas e levar à cena essa brasilidade profunda, e que tanto casa com a obra da Bethânia. Quando você precisa do brilho, do metaloide, o Flávio e tantos outros acabavam por dar chaves imagéticas de como compor um fundo àquelas obras musicais, da mesma forma que, no Carnaval, lidamos com o samba-enredo.
Você, como o Império, também colaborou para nomes como Ney Matogrosso e Luan Santana. Quais características do Ney e do Luan mais te impressionaram?
O Luan queria um coração suspenso sobre a plateia e que, num dado momento, dele caíssem balões de gás no formato de corações. Era uma concepção louca cujo desafio eu abracei. Quando vi meus funcionários lá no alto me veio uma ideia de Broadway e o resultado muito me agradou.
E o Ney?
O Ney tem uma concepção cênica muito clara na cabeça dele. Ele já trazia coisas como um cenário inspirado num palácio da Síria, com colunas de um lado e do outro. Posso pintar as colunas de quarup?, perguntava, e ele endossava, dizendo que era a cara dele. Então, o Ney sugere coisas como um recamier que ele viu num hotel em Portugal vai dando as pistas, e você vai fazendo. Com o Ney a estética é mais amarrada.
Você ajudou a abrir alas às conquistas LGBTQIA+. Como vê a atitude progressista do papa Francisco?
Abri alas porque nunca negociei minha sexualidade e minha forma de ser. O cara desmunheca e estuda e não está preocupado com isso. Ele é o que ele é. Vivi dizendo sou isso. Gostou, gostou, não gostou, beijo! Hoje, indo fazer 62 anos, vejo que tive muita coragem, que fui criterioso com as coisas nas quais acreditei e fui fazendo. Pratiquei a democracia ao exigir que me respeitassem. A igreja católica sempre foi minha oponente. As congregações dos colégios onde estudei sempre foram os algozes. Nunca quis saber deles e os desprezei com a força da minha alma.
A bênção da igreja não é importante para você então…
Não preciso de bênção! Eu me abençoo. Meu altar sou eu. Deus e a bondade vivem dentro de mim. Não encontro Deus num altar. Deus é uma construção fabulosa, linda, amorosa e compreensiva. Eles demonizam Exu, mas esse Deus que eles construíram é muito pior.
A Marquês de Sapucaí completa quatro décadas. O que precisa ser aprimorado na passarela?
Acho que tem de resolver a questão dos camarotes. As pessoas ali pagam e ficam de costas para a avenida. São pessoas ricas que não entendem que o protagonismo é do artista popular, do compositor e da passista. A Marquês de Sapucaí é um território sagrado que liga a Estácio de Sá à Vizinha Faladeira e ali é um núcleo forte de axé. Quando há ensaio técnico, o povo invade os camarotes para assistir e isso é uma maravilha.
De bate-pronto: dois momentos inesquecíveis, um como carnavelesco e outro vivido na TV.
Como comentarista, os búfalos de Iansã entrando na avenida, cavalgado por passistas quando a Mangueira homenageou Maria Bethânia no enredo “A menina dos olhos de Oyá”. Aquilo para mim foi o ápice da loucura. Um momento de dor foi quando o fogo consumiu o carro da geleira russa criado pelo Max Lopes num enredo chamado “A magia da sorte chegou”. Ali tivemos um exemplo de que só se ganha na hora, ninguém ganha de véspera.