por Rodrigo Fonseca*
Embora rejeite rótulos em sua arte e na sua vida, o cineasta Cristi Puiu, nascido há 56 anos em Bucareste, é o pilar do movimento chamado de Primavera Romena. O novo longa-metragem da carreira iniciada por ele em 2001, com “Stuff and dough”, o drama “MMXX” é parte dessa colheita primaveril de sua pátria nas telas.
O filme está em competição pela Concha de Ouro no 71º Festival de San Sebastián, no norte da Espanha, onde é encarado como um dos favoritos a prêmios. Os numerais romanos que lhe servem de títulos são um símbolo para o ano de 2020, a gênese da pandemia da covid-19.
– O lockdown decorrente do coronavírus libertou o que havia de sombrio em nossa sociedade. Tudo o que havia sido varrido para baixo do tapete da História veio à tona – diz o cineasta a NEW MAG no festival, onde esteve antes, em 2016, com “Sieranevada”, na mostra Perlak: – Não saberia avaliar que horizonte estético aguarda o cinema da Romênia, mas existem estruturas que têm se repetido.
Em “MMXX”, Puiu segue uma cartilha que ele mesmo criou, na indústria audiovisual de sua pátria, ao explorar quatro núcleos: os três primeiros envolvem uma psicóloga, seu irmão e seu marido e o quarto usa um funeral como pano de fundo.
– São três histórias internas, num mesmo espaço, em cômodos diferentes, sob ângulos diferentes, e um quatro vértice que nos leva ao exterior, mas envolve os personagens citados nas histórias anteriores, num processo dialogado de performances onde as máscaras que as pessoas usam no seu dia a dia nem sempre dão conta do que elas sentem – analisa ele, que, em 2005, tomou a cinefilia de assalto com “A morte do sr. Lazarescu”, premiado no Festival de Cannes.
Ali, Puiu abriu os olhos do mundo para a realidade da Romênia, que começou o século XXI filmando num sistema simbólico muito peculiar, compartilhado por outras vozes autorais de prestígio, como Cristian Mungiu, ao revelar, numa abordagem quase naturalista, o garrote de um estado corrupto no pescoço de toda uma geração.
Este método supõe o uso de uma estética desdramatizada (com poucas ações), em locações reais, filmadas com um olhar próximo do documentário, onde as tramas são sempre mote para que se aborde a decadência política (e moral) daquela nação a partir dos escombros sociais deixados como herança pelo Comunismo. Isso sempre é arejado por um humor dos mais cáusticos.
Desse projeto estético nasceram filmes de culto como “4 meses, 3 semanas e 2 dias”, vencedor da Palma de Ouro em 2007; “California dreamin’”, de Cristian Nemescu (também de 2007); “Instinto materno” (Urso de Ouro de 2013 em Berlim), de Calin Peter Netzer; “O tesouro” (2015), de Corneliu Porumboiu; e “Pororoca” (2017), de Constantin Popoescu.
– Um roteiro de filme nada mais é do que uma coleção de desejos. E esses desejos serão modificados no set, nas descobertas que fazemos, na forma como o elenco desafia formas de representação já conhecidas. Cinema é mais do que imagem, é mais do que atuação, é mais do que roteiro: é um estado de espírito onde o resultado não é dado pelo artista, mas pelo público – arremata Puiu. O Festival de San Sebastián segue até sábado (30).
*enviado especial ao Festival de San Sebastián