A voz era a de um cristal. Assim, o timbre de Gal Costa foi definido por Maria Bethânia em “Caras e bocas”, parceria com Caetano Veloso e canção-título do álbum lançado pela artista em 1977. E, por ser de cristal, era dos timbres mais límpidos e luminosos da música brasileira. Essa voz de cristal cantou o que quis, como quis e revolucionou o canto feminino e a música brasileira, abrindo alas para outras tantas cantoras até os dias de hoje – e que ainda vão surgir.
O canto límpido fez-se notar em “Domingo”, disco de estreia da artista, lançado em 1967 e cujas faixas foram divididas com Caetano Veloso, autor de muitas das músicas do álbum. Aluna aplicada (e devotada) de João Gilberto (1931-2019), Gal mostrou de cara que precisão era uma das linhas do mestre pela qual seguiria – e assim o fez por toda a vida.
A ruptura com a placidez bossanovista se dá no ano seguinte. Gilberto Gil preparava o arranjo de “Divino maravilhoso” quando perguntou à artista como ela queria cantá-la. “Quero algo para fora, explosivo”, devolveu Gaúcha, como Gil a chamava. E “Divino, maravilhoso” mostrou que Gracinha podia ser econômica (quando e se quisesse) e também explosiva. E ela transitou entre os dois extremos, com maestria.
Com o exílio de Caetano e Gil em fins dos anos 1960 e a saída de Rita Lee dos Mutantes, Gal ocupou o lugar de porta-bandeira do Tropicalismo. E não somente, através da sua voz, manteve acesa a chama dos amigos expatriados como, a partir dos anos 1970, lançou grandes nomes da música. Foi dela a primeira a cantar Luiz Melodia (1951-2017), no registro ao vivo do show “Fa-Tal, Gal a todo vapor”, criado por ela juntamente com Waly Salomão (1943-2003) em 1971.
Coube a ela cantar, em primeiríssima mão, canções de Péricles Cavalcanti (no álbum “Cantar”, de 1974) e Marina Lima, então Marina somente no supracitado LP “Caras e bocas”. Sempre atenta à cena roqueira, abençoou o novato Roupa Nova quando dividiu com o grupo faixas do LP “Fantasia” (1981) e, anos depois, recriou com eles a clássica “Baby”. Gal colocou seu selo de qualidade no repertório de Lulu Santos ao gravá-lo por sugestão de Lúcia Veríssimo. A cantora acabou por incluir três canções do artista no disco “Lua de mel como o diabo gosta” (1988).
Não à toa, Lulu, ao assistir recentemente a um show em que Gal voltara a cantar “Arara”, de sua lavra, postou numa rede social: “Gal é fada”, num carinhoso trocadilho com aquele outro adjetivo, também apropriado à cantora. Gal foi fada e, como tal, abençoou muitos artistas que gravaria a seguir – de Carlinhos Brown a Vander Lee (1966-2016). Todos eles devem muito a ela.
Depois de revisitar canções em discos que pouco acrescentaram na sua trajetória, Gal decide dedicar a Caetano Veloso um álbum inteiro. Em vez das esperadas (e fáceis) recriações, canções inéditas do artista. “Recanto” resultou contundente e surpreendente. O álbum mostrou que a cantora era ainda moderna. O disco rendeu um show antológico, registrado em DVD.
O passo seguinte foi mais ousado. Em “Estratosférica”, Gal dá voz a nomes de gerações recentes ou mesmo novíssimas da música. Estão lá Criolo, Silva, Mallu Magalhães e Arthur Nogueira, muitos deles em parcerias com nomes consagrados como Antonio Cícero e Milton Nascimento. Neste disco, Gal manteve um olho no presente-cotidiano sem esquecer do passado – e do de seus companheiros de geração.
Com “A pele do futuro” (2018), um dos álbuns mais recentes, mostrou-se atual e manteve-se moderna. Cantou com Marília Mendonça (1995-2021) jogando, como no LP “Profana” (1984), leite na cara dos caretas. No seu show mais recente, “As várias pontas de uma estrela”, a maior parte do repertório era dedicada a Milton Nascimento, num tributo devido e merecido a um gênio da sua geração, poucas vezes gravado por ela. Algumas apresentações foram canceladas em razão de problemas recentes de saúde da artista. Gal passou recentemente pela cirurgia de um nódulo nasal, teve alta, passou o aniversário de 77 anos em casa e, na manhã desta quarta-feira (09), a voz cristalina calou-se.
Calou-se, mas não por completo… Uma voz como a de Gal Costa não se silencia. Uma voz como a de Gal não acaba. A artista sai de cena, mas a sua voz fica. Esse cristal é inquebrantável. E, justo por isso, ele se pulveriza em muitos outros que hão de surgir na cena musical, no Brasil e no mundo.
Gal foi moderna toda a vida. E, como naquele poema do Drummond, é agora eterna. Eterna é sua voz, eterna é sua vida. Voz que, ao contrário da canção de Caetano que deu título ao LP “Minha voz”, não é mais segredo. Mas há de ser – e agora pela eternidade – uma revelação.