Há uma tática comum no esporte e na política – e que vale também para a vida – que é a de recuar para, dali em diante, avançar. Em 2014, Jean Wyllys foi reeleito para a Câmara como o sétimo deputado federal mais votado pelo Rio de Janeiro. Nem tudo foram flores na vida parlamentar. Alvo de ameaças de morte cada vez mais constantes e tendo de lidar com a hostilidade, também crescente, da ala conservadora no Congresso, Jean decidiu recuar. Para se preservar, deixou a política e auto-exilou-se na Europa. Esse tempo foi dedicado à vida acadêmica e artística. Escreveu, juntamente com a filósofa Marcia Tiburi, livro sobre estar exilado e criou uma exposição que pretende trazer ao Brasil. Quando possível, claro. Esse momento parece estar mais próximo, e Jean, que recentemente filiou-se ao PT, tem planos de, a médio prazo, voltar à política. “Vou fazer parte da reconstrução ética e estética do Brasil”, diz ele nesta entrevista ao NEW MAG. Que venham tempos de respeito às diferenças e à dignidade humana.
A sua filiação ao PT significa que podemos tê-lo de volta à política a médio ou a longo prazo?
A médio prazo seguramente. Quero e vou fazer parte da reconstrução econômica, moral, ambiental, ética e estética do Brasil que será necessária após o país ter sido arruinado pelo bolsonarismo.
Um dos motivos que te levaram a sair do PSOL foi o fato de o partido ter decidido, na época, lançar candidato à Presidência, o que acabou não acontecendo. Houve alguma mágoa com o partido?
O principal motivo de eu ter saído do PSOL foi o fato de Lula ter adquirido de volta seus direitos políticos. Neste momento, e antes mesmo, vi que Lula era a única liderança capaz de construir uma ampla aliança política que tirasse o país das mãos do fascismo. Então, decidi fazer parte logo dessa aliança, sem ter que esperar os debates e as brigas internas do PSOL para tomar a decisão mais sensata. Ao me desfiliar, também poupava o partido de não ser constrangido por minhas decisões individuais. Ou seja, foi o melhor que fiz. O tempo provou que meu movimento político estava certo; que minha leitura de conjuntura é e sempre foi acertada. Não tenho qualquer mágoa em relação ao PSOL, até porque sempre me senti e sempre, de fato, fui e sigo sendo politicamente maior do que o partido, modéstia à parte (risos).
As constantes ameaças de morte levaram-no a passar um tempo no exterior. O que foi mais difícil na decisão de sair do país? Qual o saldo positivo dessa experiência?
A violência política a que fui submetido sistematicamente, a partir de 2016, me obrigou ao exílio. Sigo no exílio, porque corro risco de morte no Brasil de Bolsonaro. O exílio é uma experiência dolorosa, mas é também transformadora em todos os sentidos. Se, por um lado, ele me tirou muita coisa, por outro, me vi obrigado a me reinventar. Marcia Tiburi e eu acabamos de publicar um livro sobre as experiências de ser exilado hoje. Chama-se “O que não se pode dizer”. E, nele, dizemos tudo. Contamos as coisas como foram e são. Produzimos memória para que, no futuro, a História não seja falsificada e nós, que identificamos ainda cedo a ascensão da extrema-direita e lutamos contra ela, não sejamos apagados.
O episódio em que, na votação do impeachment da presidente Dilma, você cospe em direção ao então deputado Jair Bolsonaro foi um gesto de coragem e representou um libelo pelo respeito às diferenças. Com o que foi mais difícil lidar após aquele episódio?
O mais difícil de lidar foi com a narrativa da imprensa de que queria me transformar em algoz em vez de me reconhecer como vítima. O sujeito me insultava, assediava e difamava todos os dias, desde que cheguei à Câmara em 2011; professava um discurso de ódio na imprensa; dedicou seu voto a um torturador e decidiu me insultar uma vez mais naquela noite tenebrosa do golpe contra Dilma. Aí, eu reajo instintivamente a esse horror com uma cuspida em sua cara, em legítima defesa, e a imprensa decide me transformar em algoz, colaborando com a família Bolsonaro. Isso foi difícil de enfrentar: a homofobia institucional. Entre as poucas pessoas que me deram razão à época, estava o escritor angolano (José Eduardo) Agualusa, que escreveu para O Globo dizendo que a única coisa decente naquela noite era minha cuspida. Com o tempo, depois de todo horror que Bolsonaro praticou contra o país, depois dos mortos da Covid, dos ataques à democracia, muita gente que me atacou por causa daquela legítima defesa me deu razão, mas nunca me pediram desculpas.
O Brasil ainda é o país onde mais se desrespeita e mata a população LGBTQIA+. Qual passo ainda precisa ser dado para fomentar a conscientização em relação às diferenças?
Muitos passos. A gente tinha avançado bastante nos governos de FHC, Lula e Dilma, mas retrocedemos muito no governo fascista de Bolsonaro. As seitas neopentecostais e as fraternidades masculinas de tiro são fundamentalmente homofóbicas e transfóbicas. As escolas voltaram a ser palco de bullying contra LGBTs, sobretudo contra os mais pobres. Temos de trilhar de novo os passos que já tínhamos dado, sobretudo no que diz respeito à estima social. Há as bolhas na internet, a visibilidade de artistas LGBTs, a apropriação de nossa cultura por parte do mercado, mas tudo isso é pouco diante da violência que ainda sofreremos fora desses nichos de mercado e guetos cultuais.
A vereadora Marielle Franco morreu por defender as diferenças e por combater as milícias. Como vê o fato de esse crime não ter sido desvendado até hoje?
O assassinato político de Marielle Franco foi uma demonstração de força bélica e falta de escrúpulos por parte da extrema-direita, cujo ninho no Brasil é o Rio de Janeiro, um narco-estado cheio de corruptos e mafiosos que engendra um cristofascismo. Escolheram matar Marielle porque, além de ela ser a mais desprotegida, a menos conhecida, seus assassinos e mandantes do assassinato acreditavam que seguiriam impunes, já que as instituições não se mobilizariam para desvendar a execução de uma mulher negra, ainda que parlamentar. Bom, o fato de ainda não sabermos quem mandou o vizinho de Bolsonaro matar Marielle Franco prova que eles estavam certos. Contudo – e eles não esperavam por isto – Marielle Franco virou um símbolo global da reivindicação por justiça social e da luta antirracista, feminista e de LGBTS, figurando ao lado de grandes mártires, como Luther King.
Como acadêmico e estudioso da Comunicação, pensa em voltar à televisão em um projeto que envolva informação e o resgate de uma consciência humanitária?
Seria um bom projeto (risos). Mas acho que a TV brasileira não está preparada para algo assim – e nem quer. Tenho um trabalho nesse sentido com a Open Democracy. De modo que seguirei atuando como jornalista, arista visual e intelectual público. Dia 27 de outubro, inauguro minha segunda exposição individual em Barcelona, num espaço nobre: La Virreina. Pretendo levar essa exposição ao Brasil quando voltar. Seu nome é bem sugestivo: “Desexilio”.